Robert Crumb

John Berryman e Robert Crumb: aproximação confessional

John Berryman

John Berryman

Minha pesquisa, “Explorando os quadrinhos de Robert Crumb”, requer, como qualquer pesquisa, muita leitura. Não só do(s) objeto(s) − no caso do próprio Robert Crumb e duas coletâneas suas lançadas aqui no Brasil, Minha Vida e Meus Problemas Com as Mulheres −, como de textos, artigos, dissertações, documentários, enfim, tudo que envolver ele ou suas obras e eu puder pôr as mãos.

Um desses textos, um artigo do pesquisador Edward Shannon, propõe uma conexão entre Crumb e os poetas confessionais, mais especificamente John Berryman e Sylvia Plath. O nome de Plath já me era conhecido, não só de fama, mas também pela polêmica envolvendo as muitas biografias a seu respeito; a escritora Janet Malcolm tem um livro que trata justamente disso (e a colega Fabiana fez um texto em duas partes, sobre o livro e o filme Rashomon, que você pode conferir aqui e aqui). Já de Berryman − que, inclusive, nunca foi publicado no Brasil −, não tinha ouvido falar, e é sobre ele e sua poesia tida como autobiográfica que falarei hoje.

capa de The Dream Songs

Capa de The Dream Songs

A poesia confessional, ou confessionalismo, foi um movimento do meio do século passado, nos Estados Unidos pós-Segunda Guerra Mundial, que focava na experiência íntima e individual – com um narrador em primeira pessoa que parece referir-se ao poeta −, abordando temas como traumas pessoais e alguns tabus, como doenças mentais, sexualidade, masturbação, depressão e suicídio, e exibindo uma preocupação social, embora não expondo, necessariamente, uma preocupação política.

Nesse contexto, John Berryman se destacaria com The Dream Songs, livro que consiste em 385 poemas sobre um personagem chamado Henry e seu amigo Sr. Bones; muitos dos poemas contêm elementos da própria vida e traumas de Berryman, como o suicídio do pai. Anos antes, Berryman havia escrito um soneto – lançado apenas depois do seu divórcio −, documentando um caso com uma mulher casada. Curiosamente, ele negaria que Henry fosse um alter ego, ou até mesmo haver qualquer conotação autobiográfica em sua obra, com a seguinte nota introdutória ao livro: “[…] o poema, então, qualquer que seja sua vasta rede de personagens, é essencialmente sobre um personagem imaginário (não o poeta, não eu) chamado Henry, um branco americano de meia idade, às vezes de blackface, que sofreu uma perda irreversível e fala de si às vezes na primeira pessoa, às vezes na terceira, algumas vezes até na segunda; ele tem um amigo, nunca mencionado, e se dirige a ele como Sr. Bones ou variantes do mesmo. […]”

Coletânea Minha Vida, de Crumb

Coletânea Minha Vida, de Crumb

Embora separados por uma geração, Crumb (de quem já falei antes aqui e aqui) e Berryman têm em comum não só comentários de críticos. Ambos têm uma forte conexão com o catolicismo: Crumb culpa sua criação católica pela sua ânsia confessional, e Berryman dedicou sua última obra à religiosidade e seu renascimento espiritual. Além disso, ambos foram diretamente influenciados pelas guerras de suas épocas, Guerra do Vietnã e Segunda Guerra Mundial, respectivamente. Para o pesquisador Thomas McLaughlin, há um forte senso de humor permeando o trabalho de Berryman, e que The Dream Songs é um trabalho de autoparódia do autor; e se tem uma coisa que Crumb entende, é de autoparódia, com boa parte de seu trabalho trazendo-o em situações surreais, entre o trágico e o cômico.

Quanto à forma, ambos também foram destaque: Crumb é tido como um dos precursores das autobiografias em quadrinhos, utilizando histórias episódicas e isoladas, além de encabeçar o movimento dos underground comix; já Berryman, no centro do movimento dos confessionais, optou, estranhamente, por estruturar seus poemas como sonetos, em pleno século XX, além de mexer na sintaxe padrão do inglês, para dar uma dicção excêntrica a seu alter ego – a si? −, Henry.

Essa conexão, que aproxima poesia e histórias em quadrinhos nas fronteiras entre confissão e autobiografia, é tema de

Excerto de

Autorretrato de Crumb

uma apresentação que farei no próximo mês; nela, pretendo expor onde esses gêneros dialogam, destacando, também, as peculiaridades de cada forma; me interessa, ainda, o contraste entre popular e intelectual − ambos autores já declararam que nem sempre suas obras devem ser compreendidas – e suas relações com a fama alcançada.

(por Bernardo Machado)

R. Crumb toca o blues

Capa da edição nacional de Blues

Colecionador compulsivo de discos – um “discólatra”, como se definiu –, Robert Crumb tem no blues, possivelmente, sua maior inspiração. Fã declarado da “música do anos 1920”, lançou uma coletânea temática chamada apenas Blues, que reunia desde ilustrações de lojas de discos antigos e cartazes de shows a contos biográficos de blueseiros cativos do autor, passando, claro, por episódios autobiográficos que levam títulos como “Por que será que ver pessoas agitando e requebrando é tão repugnante para mim?” e “Onde foi parar aquela magnífica música dos nossos avôs?”.

Dentre os contos destaca-se “Patton”, de 1984. Com base no livro Deep Blues, de Robert Palmer, Crumb narra em algumas páginas a vida do blueseiro Charley Patton – da infância, quando ganha seu primeiro violão, à sua morte. É interessante como Crumb, conhecido por seu traço cartunesco, faz uso de um traço mais realista, como que corroborando o que expõe, deixando mais verossímil.

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Primeira página de “Patton”, com recomendação de Crumb do que ouvir durante a leitura

Posteriormente, o conteúdo do livro de Palmer seria contestado, revelando serem falsas muitas informações, não passando de rumores e suposições – e isso é dito pelo próprio Crumb no posfácio de Blues. Isso traz à tona a discussão sobre o “pacto biográfico”, pacto esse firmado entre autor e leitor, uma espécie de sintonia, como certificado da veracidade do que se relata. Uma fonte falsa, por exemplo, seria motivo de quebra desse pacto, não havendo mais como confiar no que se lê. Como, então, reagiu o cartunista ao saber que suas fontes, base para sua história, eram falsas?

Para Crumb, o blues tem um quê inerente de místico, de lendário, e o mito da encruzilhada, em que os músicos iam se encontrar com o diabo para oferecer a alma em troca da fama, é o resumo disso.  Então, nada mais natural que o cartunista não se abalar. Para ele, mais vale essa ilustração do imaginário do gênero que tanto o fascina, que um retrato apurado da vida de seu ídolo.

Encontro com o Diabo na encruzilhada

Encontro com o Diabo na encruzilhada

Ironicamente, isso vai de encontro com sua faceta autobiográfica, confessional, famosa por retratar sem medo as ânsias e desejos de sua personalidade peculiar. Por adorar o gênero e idolatrar o biografado, teria sua objetividade sido comprometida? E, sabendo não ter respeitado o pacto biográfico, é possível confiar no que Crumb nos apresenta como seu, como verdadeiro?

(por Bernardo Machado)

Robert Crumb: do underground à autoexposição

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“Não estou aqui para ser educado!”, diz Crumb, em autorretrato.

No fim dos anos 1960 e início dos 1970, surgem, nos Estados Unidos, os underground comix, histórias em quadrinhos que não dependiam do aval nem da prensa das grandes editoras da época, e que iam na contramão do que era mais produzido até então – histórias de super-heróis. Eram publicadas de forma independente, muitas vezes no formato fanzine, e abordavam temas como o uso de drogas ilícitas, sexualidade e violência, temas esses que jamais passariam, à época, pelo escrutínio do Comics Code Authority – órgão regulador das publicações em quadrinhos que proibia a representação gráfica de violência, principalmente de forma extrema, nas histórias de crime e terror, além de insinuações sexuais de personagens femininas.

É nesse contexto e cenário que Robert Crumb se insere. Cartunista, ficou a princípio conhecido por suas histórias inspiradas pelo uso do LSD e por encabeçar a Zap! Comix, famosa publicação independente da época. Com o sucesso, fruto de suas criações psicodélicas e nonsense, além da capa do disco Cheap Thrills – famosa por seus vários desenhos de Janis Joplin –, Crumb vira uma celebridade da contracultura e da cena hippie, com suas ilustrações estampando camisas, pôsteres e memorabilia, tornando-o um “herói da cultura underground” (palavras do próprio Crumb).

Após o declínio dos underground comix, no fim da década de 1970, Crumb volta suas publicações para o biográfico e o autobiográfico, retratando, por exemplo, histórias de ícones não tão conhecidos do blues – gênero musical do qual é fã confesso. Sobre si, admite que sempre almejou a fama, desde criança, e que agora poderia rejeitar quem o rejeitou. Esse sentimento serve de mote para que não tenha medo de se expor; passa a retratar principalmente os seus problemas com as mulheres, que dá origem a uma série – sabiamente intitulada –, “Meus Problemas com as Mulheres”, onde mostra, de forma bastante gráfica e sem pudores, o quanto é fascinado por elas, além de explicitar, seja com imagens ou palavras, seus desejos e seus atos sexuais mais sujos e íntimos – segundo Crumb, fruto da sua criação católica, que o deixou sexualmente reprimido por muito tempo. Sempre fiel ao se ilustrar, alto e esquálido, desenha “suas” mulheres como amazonas, robustas e cheias de curvas, que viria a render-lhe acusações de machismo e misoginia, de ser pervertido e mentalmente perturbado.

No documentário Crumb, de 1994, R. Crumb demonstra que é consciente do teor do seu trabalho e do alcance ofensivo que tem ao dar uma declaração que revela sua faceta atormentada, e que tem o tom de suas publicações confessionais e autobiográficas: “Eu apenas espero que, de alguma forma, revelar a verdade sobre mim ajude de alguma forma. Não sei. Espero que sim, mas eu tenho que fazê-lo. Talvez não devesse ser permitido. Talvez eu devesse ser trancafiado e ter meus lápis tomados de mim, apenas não sei. Não dá pra dizer, sabe? Não sei me defender”.

(por Bernardo Machado)

Sobre o eu desenhado: autobiografias em quadrinhos

Em uma entrevista para o The Comics Journal em 2007, Alison Bechdel, autora de Fun Home: Uma Tragicomédia em Família (2006) comentou a urgência do gênero autobiográfico nos quadrinhos: “Eu sempre senti como se houvesse algo essencialmente autobiográfico nos quadrinhos […]. Ainda acredito nisso. Não desenvolvi minha teoria do porquê de fato, mas certamente parece que quadrinhos demandam a escrita de autobiografias”. A opinião da autora pode ter partido tão somente de um lugar de experiência com a sua própria escrita, iniciada através das tirinhas Dykes to Watch Out For, de forte conteúdo autobiográfico que foca nas vidas de um grupo de lésbicas e seus relacionamentos. Foi o sucesso dessas tirinhas que mais tarde possibilitou a publicação que tornou-a ainda mais famosa, Fun Home, obra que mescla autobiografia, biografia e romance de formação ao contar a história de sua relação com seu pai, um homossexual não assumido, e sua relação com a própria sexualidade durante seu desenvolvimento. Com base nessa trajetória, é fácil imaginar a razão de uma afirmação como a que ela faz. Mas será que isso esgota o assunto, ou será que há mesmo um jeito de entender a produção em quadrinhos, e seus desenvolvimentos recentes, como estando atrelados de alguma maneira às escritas de si, ao espaço biográfico?

Durante os anos 1970, quando os quadrinhos passavam por uma revolução no que concerne aos direitos de livre criação das histórias, surge Justin Green com Binky Brown Meets the Holy Virgin Mary (1972), considerado por muitos o trabalho pioneiro das histórias em quadrinho autobiográficas. O comum à época no quadrinho underground eram temáticas controversas – uso de drogas, violência, sexo – e dentro de um universo de histórias complicadas, Green achou espaço para contar sobre sua relação obSessiva com a religião diante da eterna necessidade de punição física pelos seus pecados, o maior dele sendo suas visões e fantasias sexuais.

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Bechdel retratando-se

Quadrinhos eram e ainda são (mesmo que em menor grau), considerados por muitos uma forma mais pobre de contar histórias. O passo dado por Justin Green abriu espaço para que outras pessoas resolvessem contar suas experiências, criando através mesmo das ideias mais impensadas, uma união entre o leitor e o autor através da identificação. O que podemos ver de importante, por exemplo, em uma história que relata somente frustrações diárias, questões pessoais e medos de um indivíduo? Harvey Pekar, autor das tirinhas American Splendor (1976), só queria poder dividir com o mundo as suas experiências pessoais com as pequenas irritações diárias e com a ajuda de Robert Crumb no desenho, começou a publicar suas histórias. Elas deram tão certo que foram regularmente publicadas até 1991, e irregularmente publicadas até 2008. Suas histórias também deram vida a um filme, lançado em 2003.

Hoje conhecemos quadrinhos como Persépolis, a história de Marjani Satrapi e seu crescimento dentro de um Islã em meio a revolução e Maus, história sobre não só Art Spiegelman e sua relação com seu pai, mas da vivência desse último em campos de concentração nos anos do nazismo. Comparando-os com os quadrinhos anteriormente citados, nota-se diferença, não só sobre o que contam, mas a base que decidem utilizar para contar suas histórias. Dentro dos quadrinhos as autobiografias tomaram diversas formas e de fato, seu contexto histórico e seu desenvolvimento diante das diferentes histórias contadas parece sim ter demandado que o “eu” se colocasse, em algum momento, na escrita. Ao afirmar a demanda autobiográfica dos quadrinhos, Bechdel pode não ter ponderado conscientemente sobre o caminho traçado por todas as diferentes histórias que podem ter inspirado suas publicações, mas levando seu comentário além da opinião, percebemos que a escrita de si nos quadrinhos vem não só de uma vontade autoral, mas das diversas oportunidades proporcionadas pelo meio ao longo do seu desenvolvimento.

(por Fabiana Bastos)