Em meu post anterior, comentei sobre a presença de imagens bregas em biografias, cenas melodramáticas que quase sempre ganham uma dimensão cômica, e que mesmo que aparentemente deslocadas da biografia mesma, ajudam a construir uma determinada imagem do sujeito biografado. Um questão, porém, é suscitada naquele comentário, e pouco explorada: qual o efeito do riso na narrativa biográfica?
Se pensamos em biografias, afinal, imagino que a ideia que nos venha à cabeça é a de um gênero austero, pomposo, um texto, como afirma François Dosse, “preocupado em dizer a verdade”, e que, por conta disso, se apoia na seriedade, no verídico, nas fontes escritas, nos testemunhos orais. Soma-se a isso a monumentalidade na construção do personagem e a distância entre o biógrafo e o biografado, tão características do gênero, e que garantem ainda mais a percepção de que, na biografia, sobra pouco espaço para o cômico.
O que as cenas melodramáticas presentes em biografias como Saramago (já comentada no meu último post) mostram, porém, é que é possível encontrar biografias bem humoradas, na qual o humor, mesmo que involuntário, possa funcionar como catalisador de uma nova leitura sobre o biografado e sobre o próprio fazer biográfico, como uma possibilidade de problematização do tratamento do arquivo e das fontes e como revisão da postura do biógrafo e de seu lugar dentro do texto.
Me explico: em Sobre Sánchez, por exemplo, biografia do escritor argentino Néstor Sánchez, escrita pelo também argentino Osvaldo Baigorria, longe de aproximar-se da figura centrada, responsável e totalmente comprometida com o sucesso do projeto (como imaginamos, afinal, ser os biógrafos), Baigorria se apresenta como um biógrafo malandro, um tanto perdido na investigação que faz da vida de Sánchez, construindo um jogo no qual a seriedade e a austeridade que tanto caracterizam o gênero biográfico são submetidas ao deboche, à ironia, ao riso.
Enquanto em Saramago, o humor se produz sem querer querendo, em Sobre Sánchez já parece haver um investimento narrativo marcado por uma leveza que redimensiona o lugar do biógrafo, obrigado a sair da sua zona isolada e autocentrada, expondo, a partir do riso, as suas próprias inseguranças e inquietudes diante da missão que tem pela frente: escrever sobre aquela vida. Nesse processo, o biografado e uma ideia de biografia também são re-articulados: afastando-se de uma composição sobre-humana e monumental do sujeito biografado, em Sobre Sánchez, temos a apresentação de um sujeito em pedaços, fragmentado, que, recuperado pelo riso, não tem seu relato de vida estruturado a partir da linearidade ou da tentativa de totalidade. Voltamos, a partir do cômico, então, ao intempestivo da vida.
Luan Queiroz