Biografia, gênero austero?

Em meu post anterior, comentei sobre a presença de imagens bregas em biografias, cenas melodramáticas que quase sempre ganham uma dimensão cômica, e que mesmo que aparentemente deslocadas da biografia mesma, ajudam a construir uma determinada imagem do sujeito biografado. Um questão, porém, é suscitada naquele comentário, e pouco explorada: qual o efeito do riso na narrativa biográfica? 

Se pensamos em biografias, afinal, imagino que a ideia que nos venha à cabeça é a de um gênero austero, pomposo, um texto, como afirma François Dosse, “preocupado em dizer a verdade”, e que, por conta disso, se apoia na seriedade, no verídico, nas fontes escritas, nos testemunhos orais. Soma-se a isso a monumentalidade na construção do personagem e a distância entre o biógrafo e o biografado, tão características do gênero, e que garantem ainda mais a percepção de que, na biografia, sobra pouco espaço para o cômico.

O que as cenas melodramáticas presentes em biografias como Saramago (já comentada no meu último post) mostram, porém, é que é possível encontrar biografias bem humoradas, na qual o humor, mesmo que involuntário, possa funcionar como catalisador de uma nova leitura sobre o biografado e sobre o próprio fazer biográfico, como uma possibilidade de problematização do tratamento do arquivo e das fontes e como revisão da postura do biógrafo e de seu lugar dentro do texto.

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Capa da 1ª edição de Sobre Sánchez

Me explico: em Sobre Sánchez, por exemplo, biografia do escritor argentino Néstor Sánchez, escrita pelo também argentino Osvaldo Baigorria, longe de aproximar-se da figura centrada, responsável e totalmente comprometida com o sucesso do projeto (como imaginamos, afinal, ser os biógrafos), Baigorria se apresenta como um biógrafo malandro, um tanto perdido na investigação que faz da vida de Sánchez, construindo um jogo no qual a seriedade e a austeridade que tanto caracterizam o gênero biográfico são submetidas ao deboche, à ironia, ao riso. 

Enquanto em Saramago, o humor se produz sem querer querendo, em Sobre Sánchez já parece haver um investimento narrativo marcado por uma leveza que redimensiona o lugar do biógrafo, obrigado a sair da sua zona isolada e autocentrada, expondo, a partir do riso, as suas próprias inseguranças e inquietudes diante da missão que tem pela frente: escrever sobre aquela vida. Nesse processo, o biografado e uma ideia de biografia também são re-articulados: afastando-se de uma composição sobre-humana e monumental do sujeito biografado, em Sobre Sánchez, temos a apresentação de um sujeito em pedaços, fragmentado, que, recuperado pelo riso, não tem seu relato de vida estruturado a partir da linearidade ou da tentativa de totalidade. Voltamos, a partir do cômico, então, ao intempestivo da vida. 

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Osvaldo Baigorria.

Luan Queiroz

Stranger Things

Salvador recebeu em agosto a exposição “O Silêncio Que Grita”, que declaradamente busca restituir a unidade do povo brasileiro através da exaltação biográfica de um ex-presidente do país: Juscelino Kubitscheck (1902-1976). A mostra, também acompanhada por um espetáculo musical no mesmo tom, “JK – Um Reencontro com o Brasil”, foi gestada por uma fundação privada (a “Fundação Brasil meu Amor”, atenção ao nome) e tem percorrido o país, sendo exibida em locais públicos e buscado a atenção de estudantes. Na capital baiana, ficou em cartaz por pelo menos dois espaços: uma estação de metrô e o saguão da Biblioteca Central da UFBA.

Os detalhes são importantes para tentar entender as intenções ambiciosas do projeto. Com uma linguagem muito didática e remissão indulgente ao passado, a exposição traz um olhar enviesado para a nossa memória cultural e histórica. Essa viagem a um “tempo de sonhos, heróis e glória” quer tão somente “contar a história do país no século XX, por meio da vida de Juscelino Kubitschek, numa época em que fomos grandiosos”, como informa o material de divulgação.

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Cena do musical “JK – – Um Reencontro com o Brasil”.

Para tanto, a trajetória de JK é disposta numa profusão de reproduções fotográficas e vídeos da época, em cronologia organizada de modo a atrelar a imagem de um político do passado à representação ideal de um país do presente. Sua narrativa biográfica é plena de retórica ufanista, sem espaço para contextualizações ou contrapontos. Sobre o célebre projeto desenvolvimentista do ex-presidente, por exemplo, nada se diz sobre o endividamento externo do país. Já o capítulo dedicado à construção de Brasília oculta a precariedade das condições de trabalho e moradia dos chamados “candangos”.

Nos trechos do livro de Jean Obry, que “comentam” os painéis da exposição, o sonho de país de JK chega a ser comparado ao do Faraó Akhenaton (!) no Egito antigo: “Tal qual o Faraó sacerdote, JK ofereceu ao mundo um novo conceito de vida, uma visão espiritual inédita (…)”.

O Juscelino em destaque no projeto é exemplar como político e como cidadão. Conciliador, progressista, pró-família: é o self made man, espírito empreendedor e predestinado a ser grande desde a infância. A narrativa de superação segue a cartilha meritocrática para criar, em linha reta, um personagem sem rasuras: a origem humilde, a dedicação ao estudos, o “médico estimado pela gente boa e humilde dos subúrbios”, o “Presidente Bossa Nova”. O fim trágico, num acidente de automóvel, só facilita a orientação canonizante da empreitada.

O silenciamento de vozes dissidentes no exame do passado culmina numa celebração acrítica da personalidade. A exposição se apropria desse padrão que é bem característico das chamadas biografias “chapas-brancas”: a narrativa universalizante, assertiva e sem ambiguidades. Por sua vez, a crença ufanista nos valores da moral e cívica como pilares da ordem social serviu a muitos senhores ao longo da história: aniquilou diferenças, balizou projetos pedagógicos afirmativos do caráter nacional e campanhas legitimadoras de regimes autoritários.

Quase 120 anos após Affonso Celso, ainda estamos às voltas com Jair Bolsonaro, a Fundação Brasil Meu Amor e seus modelos de pureza e honra. Representações padronizadas tacanhas que alimentam discursos nacionalistas. No Mundo Invertido de 2019, o silêncio, perdão e carinho serão fatores determinantes para que a convulsão política seja encerrada e o país possa, enfim, voltar aos trilhos. Ninguém segura a juventude do Brasil.

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Cena do musical “JK – – Um Reencontro com o Brasil”.

Julio Gomes

Biografias de mulheres: Laura Brandão

 

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Capa do livro de Maria Elena Bernardes sobre Laura Brandão.

A mulher ao escrever, inscreve-se num tempo, numa memória, numa projeção de identidade, torna-se registro e inclusive sabe que a escrita é voz, é potência, é valor. Inscrever-se é fazer-se existir, é se fazer conhecer numa projeção de si a princípio mais autêntica. A autenticidade se constituiria no contexto do ainda não dito, do ainda não conhecido, do ainda não devidamente divulgado, ou até mesmo de reverificações e de ressignificações do que já se fora instalado na memória coletiva. As mulheres e suas relações e práticas de escrita, como uma imagem reiterada, se embasaria na perspectiva da enunciação feminina enquanto estratégia de resistência e de enfrentamento a constituição de uma “Memória sem rastros” (Michelle Perrot).

Assim o fez Maria Elena Bernardes, ao publicar em capítulos de livros e artigos partes do seu trabalho biográfico sobre Laura Brandão (1891-1942). Trabalho biográfico produzido originalmente como dissertação de Mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas, em dezembro de 1995, foi publicado em 2007 sob o título de Laura Brandão: A Invisibilidade Feminina na Política. Laura Brandão foi declamadora reconhecida dos salões literários do Rio de Janeiro, escritora, docente, militante comunista. A obra tenta traçar seu perfil, enfocando principalmente os episódios que se referem a sua transição do literário ao político e as várias dificuldades que enfrenta a partir da sua vinculação às ações do PCB. De uma mulher que adquiriu prestígio e reconhecimento entre a elite intelectual e literária do fim do século XIX e início do século XX, tornou-se, a partir do relacionamento com Octávio Brandão e da sua influência político-partidária, uma forte referência de militância na causa comunista no Brasil.

Nesta produção constatamos a presença de uma metodologia de concepção trivial de biografia, que corresponde a uma configuração do gênero mais reconhecida massivamente. Nela, a pesquisadora diz buscar rastros sobre a personagem e, visando conceber uma produção de memória mais precisa sobre Laura Brandão, coleta informações a partir de cartas pessoais, cadernos de recordações, poesias, fotografias e artigos coletados na imprensa e entrevistas com parentes e outros que intimamente conviveram com a sua biografada. Na condição de historiadora, Maria Elena enuncia suas limitações para análise dos poemas, indicando, inclusive, ser essa uma tarefa para a crítica literária. No entanto, busca apresentá-los em seus vários trabalhos, na intenção de destacar, por amostragem, a produção literária e o potencial da escrita de Laura Brandão, principalmente em meio ao advento e difusão do Parnasianismo brasileiro.

Das leituras que tenho feito sobre História das mulheres e Histórias das relações de gênero, tenho visto constantes articulações em torno concepção de perspectivas outras de referenciação das trajetórias femininas, como assinala Michelle Perrot, ao enfocar Os excluídos da História e claramente identifico que essa narrativa sobre Laura Brandão evoca um propósito de reajustamento do discurso historiográfico. Outra imagem que tem sido veiculada reiteradamente é que, como projeção de denúncia e revisão, os textos (auto)biográficos, a exemplo dos que enfocam a atuação das mulheres nos contextos de militância no comunismo (Olga Benário, Maria Prestes, Pagu), reforçam a imagem da subalternidade e coadjuvação, assinalam as relações assimétricas e hierárquicas e, em muitos casos, instalam uma análise da controversa relação entre o público (assumir funções de militância) e o privado (assumir a responsabilidade pelo lar e pela família).

Sob a via das relações de gênero, como uma “Categoria útil de análise histórica” (Joan Scott) o foco discursivo em biografias de e sobre a história de mulheres, se concentra na tentativa de desnudamento das diferenças presentes nas estruturas das relações sociais e culturais, nas representações de poder. Assim, nesta biografia, como em outros textos que a pesquisadora procurou veicular, e que foram derivados dela (artigos, capítulo de livros sobre Comunismo no Brasil ou produções biográficas, textos publicados em eventos, etc), percebo a sua preocupação em operacionalizar discursivamente a divulgação das múltiplas vias de representação que perpassam a configuração de Laura Brandão: sua articulação em dupla via, a política e a artística, os trabalhos que executa na organização político-partidária feminina, suas estratégias e competência ao atuar em espaços literários e intelectuais da elite carioca do início do século XX, ao mesmo tempo que ressalta suas potencialidades intelectual e artística.

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Laura Brandão, 1915. Fundo Octávio Brandão. Banco de Imagens/AEL/UNICAMP.

Jussimara Lopes

Compagnon, biógrafo de Barthes

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Todas as vezes que estou, como agora, lecionando sobre Barthes, há um momento no semestre no qual retorno às biografias que já fizeram dele, e avivo a informação que já tenho, preocupado com a construção de uma lógica narrativa nas aulas. As biografias são muito distintas, uma serve melhor para uma coisa, outra para outra; uma dá conta de explorar bem um aspecto, outra não explica muita coisa mas me leva a perguntas que me parecem boas, uma outra parece uma abominação, sempre me pergunto porque não a dispensei – mas também essa está com meus sublinhados, meus post-its, foi lida e estudada. Penso que, ainda que o biográfico não explique o teórico, o teórico tem lugar num debate que envolve sujeitos situados historicamente, e cuja trama, uma vez presente, retorna à teoria, enfatizando que esta também é invenção humana, também tem suas vicissitudes.

Das cinco biografias de Barthes que já li talvez nenhuma tenha me dado tanta alegria quanto A Era das Cartas, de Antoine Compagnon, recentemente lançada (em uma tradução primorosa, generosa, muito bem anotada, de Laura Taddei Brandini) pela Editora da UFMG. É, justamente, uma daquelas que não se chama de biografia, que tem talvez mais razão para constar como um livro de memórias de Compagnon que, hoje velho, retorna ao jovem que foi e, no jovem que foi, encontra o Barthes que conheceu, de quem foi aluno, discípulo, amigo, uma mistura de tudo isso e quem sabe algo mais.

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Capa da edição brasileira do livro.

Tenho razões para a preferência, certamente. Planejo resenhar o livro, não por estar sendo cobrado por isso, mas por desejar divulgá-lo, esperar que ele alcance mais leitores e assim beneficiar de alguma maneira o feliz empenho editorial: alguns livros nos comovem assim. Aqui, quero explorar apenas um momento, que me parece particularmente feliz para questões relacionadas a biografia. É quando Compagnon diz:

Depois do almoço com Eric [Marty], encontro com uma professora que está escrevendo uma biografia de Roland. Ela quis falar comigo e fico com ela por uma hora em meu escritório, respondendo mais ou menos francamente a suas perguntas. […] Respondo sem nunca ir até o fundo do meu pensamento, não que eu não queira, mas porque isso exigiria muito mais tempo e uma cumplicidade mais antiga entre nós. […] Continuo indeciso, me pergunto até que ponto devo ajudá-la. Ela ainda não parece muito adiantada em suas pesquisas, pelo menos nesse último período da vida de Roland. Se voltar depois, tendo feito uma pesquisa mais aprofundada, certamente estarei mais disposto a lhe fornecer detalhes, mas no momento fico com o pé atrás. Não estou mentindo para ela, criando histórias, não estou inventando nada, mas também não estou dizendo tudo que sei. Para dizer tudo, pelo menos tudo que é dizível, seria preciso um tempo para abrir caminho na memória superficial, a fim de desencavar o húmus do esquecimento (é um pouco o que procuro fazer aqui).

Retornei várias vezes a esse trecho por achar que estão aí, comprimidas, várias particularidades interessantes da poética da biografia. Aparece a biógrafa, sem nome, sem relacionamento com Compagnon que, para ela, é uma “fonte”. A fonte, todavia, é um sujeito, deseja, é ambivalente, tem inclinações – e explora sua percepção do que está ocorrendo em seu encontro com a biógrafa com sutileza e vagar. Aponta, como vimos, para pelo menos dois modos da declaração a respeito dos fatos: um, protocolar, imediato, esse que ele está vivendo e outro, ainda não conhecido, fruto de um relacionamento e de uma construção a dois entre quem faz a biografia e quem lhe fornece a matéria-prima. Ambos “verdadeiros”, mas apartados por uma ligeira modulação da qualidade – pois a verdade, em biografia, também tem forma, demanda uma forma para acontecer e esse imperativo dá margem à constatação de que há formas melhores e piores, mais ou menos capazes de fazer emergir algo de uma experiência, de uma história particular, do mundo afetado e construído por um sujeito. E foi explorando essa qualidade específica, lenta, laboriosa – a que abre caminho na memória superficial, que desencava o húmus do esquecimento – que Compagnon, meio como se não quisesse fazer isso, terminou fazendo uma bela biografia de Barthes.

Antonio Marcos Pereira

Um leitor sem livros

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O escritor português José Saramago.

Estava pensando em imagens bregas em biografias. Esses momentos que por mais que bem narrados e supostamente verídicos nos causam ânsia, ao invés de comoção; erram a mão no toque e provocam o riso, quando a intenção do biógrafo era claramente sustentar o drama, nos levar ao choro, causar pena do biografado. Estava pensando, afinal, nessas cenas melodramáticas que parecem descoladas da biografia mesma, mas que ajudam a construir, também, um sentido para aquela vida que está sendo narrada. 

Falo isso depois de ler Saramago, biografia do escritor português publicada pouco antes de sua morte por João Marques Lopes, que já havia produzido anteriormente biografias de Fernando Pessoa e Eça de Queirós. Com uma escrita apressada, que tenta condensar em poucas páginas a trajetória do escritor, desde a sua infância até a velhice, Marques Lopes constrói uma narrativa que não é nem necessariamente boa, nem necessariamente ruim, prejudicada, sem dúvidas, pela superficialização dos temas e pela pouca preocupação em elaborar um retrato mais complexo e tridimensional da figura Saramago.

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Capa da biografia de Saramago escrita por João Martins Marques. 

No texto, afinal de contas, não há nada para além do autor premiado e combativo. Só elogios. E é daí talvez que a confecção narrativa das imagens bregas e melodramáticas sobre a qual me referi no primeiro parágrafo se faça relevante. Especialmente, uma, que surge ainda no início da biografia, quando o jovem Saramago, nascido em um ambiente de pobreza e de dificuldades, é caracterizado como um exímio autodidata, um sujeito consciente de que para desenvolver suas habilidades e ampliar sua formação, terá que buscar recursos que não encontra na escola e nem dentro de casa. 

Esses recursos estarão, como dirá o biógrafo, nas bibliotecas. Mas para Marques Lopes, não basta contar da paixão do escritor pelos livros e das suas aventuras noturnas pela Biblioteca Municipal do Palácio das Galveias. É preciso amarrar a história a um relato profundo e comovente de um Saramago ainda menino deitado na cama, doente. Sem forças para nada, nem para ir até a biblioteca mais próxima. Diante do desespero do filho, que é causado por sua fome de literatura, a mãe percorre a vizinhança, bate de porta em porta, reclama aos vizinhos qualquer livro que eles tenham em casa. Traz para Saramago uma pilha de materiais emprestados. 

A pobreza, a perseverança do escritor, o amor à leitura: tudo é desenhado nesse relato, nesse trecho que parece tão descolado da biografia, mas que ao mesmo tempo comunica tanto. Saramago como um leitor sem livros. Um leitor sem livros que escreveria livros. Para a cena, sejamos sinceros, tão hollywoodiana, só faltaram a chuva, os livros em meio a lama, caindo das mãos da mãe. 

Luan Queiroz

Fogo Morto

Há dragões à solta e cuspindo fogo nas trincheiras da I Guerra Mundial, onde luta o escritor J.R.R. Tolkien, autor de O Senhor dos Anéis. No filme que se propõe a contar parte de sua vida, ele surge febril, sob artilharia intensa das forças alemãs, o que favorece o delírio com as bestas que anos mais tarde frequentarão sua obra. Esta será uma ideia recorrente ao longo do filme: mostrar como alguns eventos da história pessoal do escritor foram determinantes para a consolidação do seu imaginário.

Cinebiografias não costumam primar pela exatidão ou fidelidade aos fatos da vida daqueles que pretendem retratar. Aliás, como os estudos biográficos e outros campos disciplinares têm demonstrado, a própria ideia de “exatidão” ou “fidelidade aos fatos” deve ser colocada em suspeição, uma vez que a seleção dos acontecimentos, bem como a maneira de apresentá-los, não são “puros” ou “isentos”, pressupõem uma organização narrativa. Isso posto, interessa, entre outras coisas, observar as estratégias acionadas, o que é ocultado ou destacado nesses produtos que contam uma vida.

Dirigido pelo finlandês Dome Karukoski, “Tolkien” (EUA, 2019), afirma uma das pedras angulares do gênero, em caso de artistas ilustres: mostra o cruzamento mítico da Ipiranga e São João dos biografados, a esquina existencial onde (supostamente) Vida e Obra se encontram um dia para trocar umas ideias e a fagulha se acende.

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Detalhe do pôster de Tolkien (2019), dirigido por Dome Karukoski. 

Solene, a produção se filia a um subgênero muito longevo na tradição biográfica: a exegese de vidas exemplares e heroicas. Do horror das trincheiras aos flashbacks de infância (pobre, mas compensada por talento e nobreza de caráter do gênio em formação), não há margem no filme para qualquer consideração menos determinista da relação do biografado com sua escrita, seu processo criativo.

“Tolkien” enfatiza a ascese espiritual do escritor também pelo que sonega. Um espectador desavisado, que porventura não conheça o personagem-título, vai acompanhar sua vida na infância, juventude e na guerra. Só saberá de quem se trata nos minutos finais da exibição, quando ele inicia, a bico de pena e em um plano fechado no manuscrito (sacralizado), a escritura de “O Hobbit”. O ciclo se fechou, a esquina é presente. O arremate complementar da informação – “livro inaugural de sua carreira como um dos escritores de fantasia mais aclamados do mundo” – surge através de outro recurso muito caro ao gênero: a cartela explicativa.

Convencional tanto no esboço edulcorado da Inglaterra eduardiana quanto no negrume lamacento do campo de batalha, “Tolkien” fracassa pela falta de imaginação. Investe o quanto pode nessas notas ligeiras sobre eventos e perturbações que em tese prefiguram a obra de um escritor, mas tangencia pontos tão ou mais importantes como a sua formação efetiva, a sistematização de seu pensamento. Durante a produção, os roteiristas chegaram a consultar parte da correspondência entre o autor e um de seus amigos mais queridos, mas nem mesmo isso garantiu ao filme ambiguidades ou contextualizações mais complexas em torno dos acontecimentos e trajetórias abordadas. Uma pena. Aqui ou nos domínios da Terra Média, anel de bamba só se entrega a quem mereça usar.

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Julio Gomes

Borges: biografia inocente, biógrafo astuto

Em um momento muito frequentado por nós que estudamos biografias, Borges comenta:

Que um indivíduo queira despertar em outro indivíduo recordações que pertenceram apenas a um terceiro é claramente um paradoxo. Realizar esse paradoxo despreocupadamente é a vontade inocente de toda biografia.

Isso está em Evaristo Carriego, livro de 1930 no qual Borges já ensaia algo que há de se tornar sua assinatura e fortuna: um jeito despreocupado de lidar com o paradoxo. Volta e meia retorno a esse trecho. A configuração do biógrafo como uma espécie de medium, que conduz a memória de uma pessoa à leitura da outra, ainda me parece interessante. Além disso, há proveito na problematização inscrita na natureza do propósito: se fazer biografia é isso (“despertar em outro indivíduo recordações que pertenceram apenas a um terceiro”), é algo quase impossível.  Entendo que Borges quer dizer que é algo tão difícil, de possibilidade tão remota de sucesso, que só um inocente há de se lançar nesse precipício: só alguém inconsciente da extensão, da gravidade do problema haveria de tomar essa tarefa para si.

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“Inocente”: nada mais distante de uma certa ideia de profissionalização da leitura e da crítica e, no entanto, Borges aqui apresenta essa noção (irmã da ingenuidade) como um requisito para que a biografia aconteça, uma condição fundante do gênero. Me pergunto: como localizar a inocência de um biógrafo? Até onde podemos chegar pensando sobre biografia nesses termos esopianos? Observo que, para Borges, a inocência não é exatamente dos biógrafos, mas sim do gênero. E o que pode ser isso, um gênero “inocente”?

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Capa de uma das edições de Evaristo Carriego.

Claro, depois de um certo tempo, nossa tendência é ler Borges com um pé atrás. Logo adiante, no mesmo livro, dando sequência ao seu projeto de esboçar “uma vida de Evaristo Carriego”, Borges diz que

Dele, não se conheceram fatos de amor. Seus irmãos tem a lembrança de uma mulher de luto que costumava esperar na calçada e que mandava qualquer menino procurá-lo. Gracejavam: nunca lhe arrancaram seu nome.

“Não se conheceram fatos de amor”, mas ao que parece eles estão lá, em estado de mistério e provocação ao biógrafo – que tem de se haver não apenas com o que sabe, mas também com o que sabe que ignora. O gênero pode ser inocente, mas é característico da vida a proximidade com o mistério e o enigma e, para fazer jus a isso, qualquer biógrafo tem de manifestar certa astúcia, e dar um jeito de descobrir o nome daquela mulher de preto que buscava Carriego.

Antonio Marcos Pereira

AVISO: O blog entrará em recesso. Voltaremos com uma nova postagem em setembro. Até logo mais!

O lacunar como potência biográfica

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Mateo López, Nowhere Man, 2011.

Das maiores lembranças que tenho da leitura da tese do professor Luciano Bedin da Costa, que, no doutorado, trabalhou com o biografema como estratégia biográfica, um dos trechos que mais me tocam – e que sempre repito, com uma frequência, confesso, exagerada – é “na impossibilidade de resgatar a linha histórica, resta ao biógrafo tentar à sua maneira”. Não é bem uma citação direta e não sei se hoje concordo totalmente com a ideia que se desenha aí, mas a frase, certamente, funciona como um catalisador para a reflexão sobre uma questão que muito me interessa, e que tem feito parte do meu investimento atual de pesquisa também: a ausência de uma massa documental extensa, abundante, cheia de informações é um impedimento para a escrita de uma biografia?  Em outras palavras, lacunas imensas no arquivo são igual a “desculpe, biógrafo, você não poderá produzir uma biografia com isso?”

Em um primeiro momento, achei que sim. Mas estou aprendendo que não. A cada dia me dou conto de que o lacunar também pode ser potência. Vejamos o caso de Shakespeare. O grande dramaturgo não nos deixou cartas, diários, anotações que pudessem trazer uma luz sobre sua vida. Sabe-se que morreu no dia 23 de abril de 1616, aos 52 anos, mas sua data de nascimento, celebrada, por convenção, no mesmo 23 de abril, é incerta. Além dos registros legais, de alguns documentos, de relatos de terceiros e da própria obra do poeta, o arquivo deixado por Shakespeare não é nada robusto.

Isso não impediu, no entanto, que uma série de estudos biográficos tenha sido (e esteja sendo) produzida sobre Shakespeare. Em uma busca rápida e descompromissada no Google, por exemplo, é possível encontrar inúmeros textos que tratam de episódios da vida do dramaturgo. Títulos como Shakespeare e a economia, A mãe de Shakespeare, 1599: Um ano na vida de William Shakespeare, ou mesmo trabalhos mais monumentais como o de Stanley Wells em Shakespeare For All Time.

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Mateo López, Nowhere Man, 2011.

O que facilmente se aplica também a Miguel de Cervantes, cuja data de nascimento, assim como a de Shakespeare, é desconhecida. Tampouco há documentos que revelem muitas informações sobre a infância e a juventude do criador do Quixote. O que não intimidou a realização do trabalho de biógrafos como Jean Canavaggio, autor de Cervantes e Jordi Garcia, responsável pelo recente livro La conquista de la ironía.

 

Não estou dizendo, de nenhuma maneira, que, nesses casos, a relação entre o trabalho do biógrafo e o arquivo se perca. A importância do arquivo permanece. Mas é justamente nesse ponto, me parece, que a citação do Bedin que utilizei no início deste texto mais se amplifica: na impossibilidade (ou melhor, só na dificuldade mesma) de resgatar a linha histórica, de superar as lacunas presentes na massa documental, ao biógrafo, resta especular, elaborar novas hipóteses, apresentar os desafios mais do que esclarecê-los, converter o próprio arquivo e o lugar e as decisões do biógrafo, afinal, em problemas a serem debatidos.

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Mateo López, Nowhere Man, 2011.

Luan Queiroz

Labirinto de paixões

A tradição assume o comando da narrativa em “Chavela” (2017), cinebiografia da cantora mexicana (natural da Costa Rica) Chavela Vargas, morta, em 2012, aos 93 anos, ainda em plena atividade. O documentário dirigido por Catherine Gund e Daresha Kyi – que integra a programação do Festival In-Edit 2018 – não resiste à tentação de consolidar uma imagem pacificada da intérprete andrógina de voz rouca e chorosa.

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Pôster do filme.

As diretoras partiram de uma entrevista caseira em vídeo que Gund havia feito com ela em 1992. Na ocasião, a cantora ainda estava reclusa, longe dos palcos, imersa no limbo existencial onde se ocultou antes de reassumir, nas últimas décadas de vida, o posto de diva do cancioneiro popular latino. Fazia música para “borrachos”, como ela mesma definia; das “rancheras” épicas, que resgatavam as tragédias e triunfos de heróis anônimos da Revolução Mexicana , às desilusões amorosas, a solidão, o álcool e (muita) dor de cotovelo.

Não por acaso, entre os seus admiradores estava Pedro Almodóvar. O cineasta diz no filme ter encontrado na voz de Chavela Vargas uma grande interlocutora, um espelho de si mesmo. De fato, é possível identificar nela toda a paixão, os arroubos do melodrama e a fluidez das identidades de gênero que afetam os protagonistas do espanhol. Os dois universos estão tão entrelaçados que fica até difícil imaginar um sem o outro (o que seria de “A Flor do Meu Segredo”, por exemplo, sem a hipnótica “El último trago”?).

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Chavela e Pedro Almodóvar.

Ícone LGBT, embora só viesse a se assumir lésbica aos 81 anos, Vargas é tratada no filme como uma força da natureza. A intensidade da performance era parte essencial do seu repertório: vestia-se como um homem (no México carola dos anos 1950) para cantar letras do ponto de vista masculino, chorando a perda da mulher amada e a sina de seguir pela vida debulhando um rosário de aflições. Bebia muito, seduzia mulheres notáveis (diz-se que Frida Kahlo e Diego Rivera foram seus amantes; após cantar no casamento de Elizabeth Taylor e Mike Todd, em Acapulco, teria acordado com ninguém menos que Ava Gardner) e torrava tudo o que tinha em farras. Aos poucos foi desaparecendo, como se confirmasse o destino trágico dos grandes artistas, maiores que a vida, consumidos pelo fulgor da própria sensibilidade e gênio.

Essa trajetória de façanhas impressionantes é reconstituída através de uma gama de imagens de arquivo, entrevistas oficiais ou informais e pontuada por trechos de suas canções. Contemplam desde a sua antiga carreira mexicana, o alcoolismo, o autoexílio e o abandono precoce da carreira, até o exuberante ressurgimento para o mundo (já septuagenária e quando muitos a julgavam morta), num palco da Espanha. Como apoio, o filme ancora-se também em entrevistas com amigos, ex-colaboradores, ex-namoradas e fãs.

Embora a mitificação da protagonista não seja um problema, os esforços das diretoras em organizar o material de que dispõem não refletem o caráter transgressivo que pautou a vida da cantora. Pelo contrário. Apesar de o filme ceder-lhe a fala na condução da narrativa – essencialmente é Chavela quem narra sua própria história –, o que vemos na tela parece ter sido pensado a partir de uma perspectiva institucionalizante, que impõe ao material critérios demasiadamente rígidos e tradicionais de organização.

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Chavela e Frida.

Seja na cronologia estanque dos fatos, seja na filiação a uma espécie de jornada heroica arrumadinha, com todas as etapas envolvidas no processo facilmente identificáveis (paraíso, obstáculos, ruptura, redenção), a estrutura do filme acomoda a construção biográfica em uma identidade beatificada, assaz legitimada.

Nas poucas oportunidades que surgem para complexificar esse padrão, o filme opta pela fuga do conflito e pela anuência cúmplice com o que é afirmado nas entrevistas. Em determinado momento, por exemplo, uma ex-namorada conta que, ao contrário do que Chavela dizia, não foi o tratamento com xamãs indígenas da região onde moravam que a fez parar de beber por um tempo, mas sua ameaça (depois cumprida) de abandoná-la e ir embora, caso não controlasse o vício. A cantora era uma notória mentirosa, em sua opinião, mas esse traço mitômano não é levado em consideração aí ou em qualquer outro momento. A ambiguidade é descartada. Tampouco a relação da intérprete com os empresários – que teriam lhe roubado, segundo ela – é bem explicada. Ninguém é procurado para confirmar ou apresentar outra versão.

Ao por em marcha esse movimento estabilizador, “Chavela” apara as arestas e passa a limpo a história de sua heroína outsider. O objetivo parece ser o de afastá-la do anonimato e esquecimento em prol do mito, preservar sua memória das noites tristes de abandono e desolação das canções. Louvável como propósito – e até funcional, pode-se dizer, pois, a despeito da caretice, o filme deixa-se ver sem incômodos. Porém, ao invés de celebrar a vida de sua biografada, acaba inaugurando mais um busto em praça pública. Os pombos agradecem.

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Julio Gomes

Borboletas, Perón, Molloy

Recentemente, por conta de um curso que estou lecionando, reli várias produções que mesclam em alguma medida um componente crítico a uma motivação memorialística. Foi assim que reli, com bastante felicidade, várias coisas da crítica argentina Sylvia Molloy.

Molloy aparece para mim como autora de um dos mais voluptuosos livros de crítica à produção de Borges, Las letras de Borges (1979) e de um livro fundamental sobre a autobiografia na América Latina, Acto de presencia: la literatura autobiográfica en Hispanoamérica (de 1997, e publicado aqui no Brasil em 2003 com o título de Vale o escrito: a escrita autobiográfica na América Latina). Nas reuniões do NEGA trabalhamos e discutimos seus capítulos sobre Sarmiento e Manzano, observando como ela valoriza detalhes muito eloquentes dos procedimentos desses personagens excepcionais, construindo uma história de um modo de produzir identidades textuais na América hispânica que abarca o monumental, o anômalo e o delirante, guardando ainda espaço para uma leitura que me parece muito rica e sensível de um de meus livros favoritos, Cadernos de Infância (1937), de Norah Lange.

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Agora, relendo seus livros mais recentes – em particular o último, Citas de Lectura (2017) – pensei ler ressonâncias de Lange em alguns momentos nos quais Molloy expõe suas próprias recordações de infância. O livro todo funciona como bom exemplo de um intuito proclamado por Montaigne – o de “pintar a passagem”. Assim, Molloy anota suas leituras, entendendo leitura aí de um jeito bem amplo, sem pensar em disjunção entre página e mundo. Transita, em capítulos curtos, de momentos centrais de sua formação até experiências de luto e perda, sempre com um manejo muito generoso do comum, do cotidiano, do pessoal. O livro tem momentos melancólicos, alegrias, perplexidades – mas sobretudo manifesta uma admirável capacidade de prestar atenção. Molloy manuseia  objetos e incidentes com vagar, sem parecer ansiosa para acertar no alvo da interpretação, apostando na potência da pergunta, do não-saber sobre o mundo, sobre o outro, sobre si mesma. No capítulo “Mais borboletas”, ela conta de seu gosto ao encontrar em um sebo um livro didático de sua infância, o livro no qual sua irmã tinha aprendido a ler. Fica maravilhada com a maneira algo assistemática como parecia funcionar o ensino de língua materna de então, capaz de misturar ilustrações de pombas, anões e borboletas com rimas fáceis de fundo moral. Mas, a certa altura, diz, “O tom do livro muda”. Aparecem estradas de ferro, aviões, navios petroleiros, uma imagem de Perón: “Imediatamente, estamos em um mundo que se quer real”.

Sublinhei esse trecho – “Imediatamente, estamos em um mundo que se quer real” – e pensei que aí, nessa página de Molloy, via a estrutura de um dos desafios do biógrafo. Uma vida, qualquer vida, há de ter seu quinhão de “pombas, anões e borboletas”, sua cota de “rimas fáceis de fundo moral” convivendo com Perón (ou seus avatares), e os supostos grandes temas de alta relevância, como O Capital Internacional, O Desenvolvimento, A Crise. O que tem preponderância? Lembrei de César Aira, e seus livrinhos delirantes e muitas vezes felizes, que se construíram ao longo dos anos da Guerra das Malvinas e crises econômicas sucessivas na Argentina, provavelmente sendo pagos em alguma medida com o trabalho (intenso, incessante) de Aira como tradutor. O que é mais importante para a biografia: a fantasia ou o labor? O sonho ou a greve? A farra ou a faina?

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Silvina Ocampo.

Cada poética da biografia representa uma alternativa, uma tentativa de abordar o problema da convivência desses elementos. Há o que Fulano sonhou, há como Fulano ganhou a vida. Não é exatamente uma resposta, mas ouço uma sugestão oportuna em um outro momento do mesmo livro quando, comentando agora Silvina Ocampo, Molloy elogia seu “rechaço da monumentalidade e da falsa seriedade, seu convite para ver o outro lado, os outros lados possíveis das coisas”.

 Antonio Marcos Pereira