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Um leitor sem livros

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O escritor português José Saramago.

Estava pensando em imagens bregas em biografias. Esses momentos que por mais que bem narrados e supostamente verídicos nos causam ânsia, ao invés de comoção; erram a mão no toque e provocam o riso, quando a intenção do biógrafo era claramente sustentar o drama, nos levar ao choro, causar pena do biografado. Estava pensando, afinal, nessas cenas melodramáticas que parecem descoladas da biografia mesma, mas que ajudam a construir, também, um sentido para aquela vida que está sendo narrada. 

Falo isso depois de ler Saramago, biografia do escritor português publicada pouco antes de sua morte por João Marques Lopes, que já havia produzido anteriormente biografias de Fernando Pessoa e Eça de Queirós. Com uma escrita apressada, que tenta condensar em poucas páginas a trajetória do escritor, desde a sua infância até a velhice, Marques Lopes constrói uma narrativa que não é nem necessariamente boa, nem necessariamente ruim, prejudicada, sem dúvidas, pela superficialização dos temas e pela pouca preocupação em elaborar um retrato mais complexo e tridimensional da figura Saramago.

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Capa da biografia de Saramago escrita por João Martins Marques. 

No texto, afinal de contas, não há nada para além do autor premiado e combativo. Só elogios. E é daí talvez que a confecção narrativa das imagens bregas e melodramáticas sobre a qual me referi no primeiro parágrafo se faça relevante. Especialmente, uma, que surge ainda no início da biografia, quando o jovem Saramago, nascido em um ambiente de pobreza e de dificuldades, é caracterizado como um exímio autodidata, um sujeito consciente de que para desenvolver suas habilidades e ampliar sua formação, terá que buscar recursos que não encontra na escola e nem dentro de casa. 

Esses recursos estarão, como dirá o biógrafo, nas bibliotecas. Mas para Marques Lopes, não basta contar da paixão do escritor pelos livros e das suas aventuras noturnas pela Biblioteca Municipal do Palácio das Galveias. É preciso amarrar a história a um relato profundo e comovente de um Saramago ainda menino deitado na cama, doente. Sem forças para nada, nem para ir até a biblioteca mais próxima. Diante do desespero do filho, que é causado por sua fome de literatura, a mãe percorre a vizinhança, bate de porta em porta, reclama aos vizinhos qualquer livro que eles tenham em casa. Traz para Saramago uma pilha de materiais emprestados. 

A pobreza, a perseverança do escritor, o amor à leitura: tudo é desenhado nesse relato, nesse trecho que parece tão descolado da biografia, mas que ao mesmo tempo comunica tanto. Saramago como um leitor sem livros. Um leitor sem livros que escreveria livros. Para a cena, sejamos sinceros, tão hollywoodiana, só faltaram a chuva, os livros em meio a lama, caindo das mãos da mãe. 

Luan Queiroz