Patton

R. Crumb toca o blues

Capa da edição nacional de Blues

Colecionador compulsivo de discos – um “discólatra”, como se definiu –, Robert Crumb tem no blues, possivelmente, sua maior inspiração. Fã declarado da “música do anos 1920”, lançou uma coletânea temática chamada apenas Blues, que reunia desde ilustrações de lojas de discos antigos e cartazes de shows a contos biográficos de blueseiros cativos do autor, passando, claro, por episódios autobiográficos que levam títulos como “Por que será que ver pessoas agitando e requebrando é tão repugnante para mim?” e “Onde foi parar aquela magnífica música dos nossos avôs?”.

Dentre os contos destaca-se “Patton”, de 1984. Com base no livro Deep Blues, de Robert Palmer, Crumb narra em algumas páginas a vida do blueseiro Charley Patton – da infância, quando ganha seu primeiro violão, à sua morte. É interessante como Crumb, conhecido por seu traço cartunesco, faz uso de um traço mais realista, como que corroborando o que expõe, deixando mais verossímil.

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Primeira página de “Patton”, com recomendação de Crumb do que ouvir durante a leitura

Posteriormente, o conteúdo do livro de Palmer seria contestado, revelando serem falsas muitas informações, não passando de rumores e suposições – e isso é dito pelo próprio Crumb no posfácio de Blues. Isso traz à tona a discussão sobre o “pacto biográfico”, pacto esse firmado entre autor e leitor, uma espécie de sintonia, como certificado da veracidade do que se relata. Uma fonte falsa, por exemplo, seria motivo de quebra desse pacto, não havendo mais como confiar no que se lê. Como, então, reagiu o cartunista ao saber que suas fontes, base para sua história, eram falsas?

Para Crumb, o blues tem um quê inerente de místico, de lendário, e o mito da encruzilhada, em que os músicos iam se encontrar com o diabo para oferecer a alma em troca da fama, é o resumo disso.  Então, nada mais natural que o cartunista não se abalar. Para ele, mais vale essa ilustração do imaginário do gênero que tanto o fascina, que um retrato apurado da vida de seu ídolo.

Encontro com o Diabo na encruzilhada

Encontro com o Diabo na encruzilhada

Ironicamente, isso vai de encontro com sua faceta autobiográfica, confessional, famosa por retratar sem medo as ânsias e desejos de sua personalidade peculiar. Por adorar o gênero e idolatrar o biografado, teria sua objetividade sido comprometida? E, sabendo não ter respeitado o pacto biográfico, é possível confiar no que Crumb nos apresenta como seu, como verdadeiro?

(por Bernardo Machado)